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segunda-feira, 22 de junho de 2020

Dia 100

Foto: Carolina C. Gregorutti

Brasília, 22 de junho de 2020.

Dia 100


Hoje fiz a conta, deu um número assustador. Sim, 100 (cem) dias dentro do meu apartamento em Brasília. E agora percebo porque deprimi no último sábado. Era um choro que não cabia em mim e nem eu mesma sabia por que chorava. Chorei no dia 98 (noventa e oito) e voltei a sorrir no dia 100 (cem). Mas como foi chegar até aqui?

No início era um susto e um desespero total. Ouvia de todo mundo: - Estamos muito preocupados contigo, você é grupo de risco, não se arrisque!
E eu, escutava, acolhia e cumpria. Cumprindo sigo! Mas não me considero mais um grupo de risco, pois consegui chegar até aqui. Risco então, não são aqueles que insistem em nadar contra a corrente? Hoje, tenho pressa em dizer que sim: Vocês são o risco para os seus amigos, familiares e vizinhos. Sim, vocês são o risco do Brasil.

Nesse tempo, de 100 (cem) dias, me ajustei internamente e haja estica e puxa, de lá e de cá. Precisei ressignificar cada cantinho da minha casa, limpei tudo nas primeiras semanas, mudei o que eu queria, fui respirando aqui dentro. Transformar espaços é realmente desafiador e transformá-los morando dentro deles e vivendo este processo é totalmente conturbador! Uffa, 100 (cem) dias e estou na casa que eu vivo e gosto. Mas seria o aposento? Não, to falando da minha casa interna. E tudo o que eu disse até aqui era sobre mim.

Briguei comigo no primeiro mês, eu me sentia feia, gorda, fraca pra fazer exercícios, inquieta para ler um livro, irritada com o fogão e atordoada com o ferro de passar roupa. Me sentia uma tonta atendendo as crianças no online, percebendo que os pais deles também estavam se sentindo como eu.
No segundo mês briguei com o mundo inteiro, quis voltar a militar pelo que acredito politicamente, me violentei lendo e vendo televisão insistentemente, falava e falava em todos os grupos que eu tinha no whatsapp, queria gritar para todos que a pandemia era real, mas parecia que ninguém queria escutar. Eu trabalhava mais e ganhei tão pouco, o que estava acontecendo?

No terceiro mês me acalmei, respirei fundo, olhei para o espelho e gostei do que vi, preenchi minha casa com meu cheiro, vi a flor de orquídea florescer, parei de me violentar e aceitei. Continuei trabalhando muito, mas sabia e sei o que estou fazendo ali. Resolvi olhar para mim, me aceitar. Desliguei a televisão, li o livro que queria, respirei e respiro fundo todos os dias.
E percebi que não estava sozinha. As redes me ajudaram a entender que era realmente esta a proposta do momento e só quem não quer ver são aqueles que hoje chamo de grupo de risco para o Brasil. E muito provavelmente você irá se identificar neste texto, ou comigo, ou com quem aponto como grupo de risco e peço: faça algo com isso.

No trabalho, comecei a escutar mais e me colocar apenas quando necessário. Notei que o amor que tenho pelo que faço é o que me completa em todos os sentidos e é neste espaço que eu quero sempre estar. Aprendo diariamente e um dia escutei: é um pacto social, não quero sair de casa por você, Carol! Ali eu compreendi, o risco de saúde é meu, mas aqueles que não entenderam o contexto de cuidado ficam, para mim, rotulados como grupo de risco para o Brasil.
Sei que há muitos por aí que querem ampliar produtividade, ficar magro, ser a mãe exemplar, a esposa provedora do lar aconchegante, o chefe querido por todos, etc e etc, mas sinto dizer, só teremos a melhor versão de nós mesmos se soubermos estar no lugar que vivemos em presença e leveza, e novamente digo: não é o seu aposento, é você!

E agora são 100 (cem) dias de isolamento, quantos dias a mais virão? Não sei. Não pretendo saber e prefiro me manter neste contexto de cuidado, comigo e com todos que amo. Me percebendo, aquietando, silenciando e observando. Tudo está tão claro e se completando, que neste espaço não quero sair.

Talvez seja a estratégia que eu tive para sobreviver até aqui e acredito que é isso mesmo. Mas não queria me calar, eu queria escrever, pois estou vendo muitas pessoas que amo inquietas e tristes pois estão sendo obrigadas a não ficarem no “grupo de contexto ao cuidado” e isso está violentando elas, por não serem o grupo de “risco” que a OMS colocou, e assim, não terem a “desculpa” perfeita para permanecer no isolamento e ainda por cima estarem sendo motivo de chacota, ou  de desdém por compreenderem que somente o isolamento modifica números como os de hoje: oito dias, um milhão de novos casos em TODO mundo.

Por definição declaro grupo de risco para o Brasil: você que reclama toda hora da máscara e não conseguiu se entender com ela ou simplesmente desistiu. Você leu? Você que não usa a máscara é risco para as pessoas a sua volta. Você que precisa mudar de “ares” e quer estar na praia, malhar nos parques, praticar qualquer atividade em grupo (ou pior, em grupo e SEM MÁSCARA!!!), você é risco para o Brasil. Você que acha que não precisa passar álcool gel, que não quer manter distancia mínima de segurança, que não troca a roupa quando chega em casa, que não toma banho e lava os cabelos por preguiça, você é risco para o meu país. Você que é chefe e insiste em ter todos os seus funcionários no mesmo espaço sem ao menos tentar efetivamente implementar trabalho remoto, você é o risco para o Brasil. Você que solta seu cachorro no gramado, vendo que ele está curioso para cheirar outras pessoas e sabe que elas terão compaixão e irão fazer carinho nele, você é o risco para o Brasil. Você que quer manter seu estabelecimento aberto descumprindo as medidas das autoridades responsáveis, você é o risco maior do meu país.

Ainda falando com você, que nos coloca a todos em risco, saber que pode carregar esse vírus que vai infectar uma pessoa e que esta, por consequência, pode infectar outras - e em algum ponto dessa transmissão alguém poder morrer - não é suficiente para ficar isolado? Não é suficiente para você, grupo de risco?

Você, que acredita que o vírus não vai pegar você, porque tens a vida perfeita, plena e consciente, você é o grupo de risco para o Brasil. Você, você e você, entendeu?
São 100 (cem) dias, não é uma crença, não é um excesso de cuidado, é uma situação extrema, são milhões de mortes sem apoio do governo e você, grupo de risco para o Brasil, é conivente com isso tudo.

Vivo a pandemia do COVID-19 e estou compreendendo muito sobre mim e sobre você!
C´est l avie!

Carolina Cangemi Gregorutti