Foto: Carolina C. Gregorutti
Brasília, 22 de junho de 2020.
Dia 100
Hoje fiz a conta, deu um número assustador. Sim, 100 (cem)
dias dentro do meu apartamento em Brasília. E agora percebo porque deprimi no
último sábado. Era um choro que não cabia em mim e nem eu mesma sabia por que chorava.
Chorei no dia 98 (noventa e oito) e voltei a sorrir no dia 100 (cem). Mas como
foi chegar até aqui?
No início era um susto e um desespero total. Ouvia de todo
mundo: - Estamos muito preocupados contigo, você é grupo de risco, não se
arrisque!
E eu, escutava, acolhia e cumpria. Cumprindo sigo! Mas não
me considero mais um grupo de risco, pois consegui chegar até aqui. Risco
então, não são aqueles que insistem em nadar contra a corrente? Hoje, tenho
pressa em dizer que sim: Vocês são o risco para os seus amigos, familiares e
vizinhos. Sim, vocês são o risco do Brasil.
Nesse tempo, de 100 (cem) dias, me ajustei internamente e
haja estica e puxa, de lá e de cá. Precisei ressignificar cada cantinho da
minha casa, limpei tudo nas primeiras semanas, mudei o que eu queria, fui
respirando aqui dentro. Transformar espaços é realmente desafiador e
transformá-los morando dentro deles e vivendo este processo é totalmente
conturbador! Uffa, 100 (cem) dias e estou na casa que eu vivo e gosto. Mas
seria o aposento? Não, to falando da minha casa interna. E tudo o que eu disse
até aqui era sobre mim.
Briguei comigo no primeiro mês, eu me sentia feia, gorda,
fraca pra fazer exercícios, inquieta para ler um livro, irritada com o fogão e
atordoada com o ferro de passar roupa. Me sentia uma tonta atendendo as
crianças no online, percebendo que os pais deles também estavam se sentindo
como eu.
No segundo mês briguei com o mundo inteiro, quis voltar a
militar pelo que acredito politicamente, me violentei lendo e vendo televisão
insistentemente, falava e falava em todos os grupos que eu tinha no whatsapp,
queria gritar para todos que a pandemia era real, mas parecia que ninguém
queria escutar. Eu trabalhava mais e ganhei tão pouco, o que estava
acontecendo?
No terceiro mês me acalmei, respirei fundo, olhei para o
espelho e gostei do que vi, preenchi minha casa com meu cheiro, vi a flor de
orquídea florescer, parei de me violentar e aceitei. Continuei trabalhando
muito, mas sabia e sei o que estou fazendo ali. Resolvi olhar para mim, me
aceitar. Desliguei a televisão, li o livro que queria, respirei e respiro fundo
todos os dias.
E percebi que não estava sozinha. As redes me ajudaram a entender
que era realmente esta a proposta do momento e só quem não quer ver são aqueles
que hoje chamo de grupo de risco para o Brasil. E muito provavelmente você irá
se identificar neste texto, ou comigo, ou com quem aponto como grupo de risco e
peço: faça algo com isso.
No trabalho, comecei a escutar mais e me colocar apenas
quando necessário. Notei que o amor que tenho pelo que faço é o que me completa
em todos os sentidos e é neste espaço que eu quero sempre estar. Aprendo
diariamente e um dia escutei: é um pacto social, não quero sair de casa por
você, Carol! Ali eu compreendi, o risco de saúde é meu, mas aqueles que não
entenderam o contexto de cuidado ficam, para mim, rotulados como grupo de risco
para o Brasil.
Sei que há muitos por aí que querem ampliar produtividade,
ficar magro, ser a mãe exemplar, a esposa provedora do lar aconchegante, o
chefe querido por todos, etc e etc, mas sinto dizer, só teremos a melhor versão
de nós mesmos se soubermos estar no lugar que vivemos em presença e leveza, e
novamente digo: não é o seu aposento, é você!
E agora são 100 (cem) dias de isolamento, quantos dias a
mais virão? Não sei. Não pretendo saber e prefiro me manter neste contexto de
cuidado, comigo e com todos que amo. Me percebendo, aquietando, silenciando e
observando. Tudo está tão claro e se completando, que neste espaço não quero
sair.
Talvez seja a estratégia que eu tive para sobreviver até
aqui e acredito que é isso mesmo. Mas não queria me calar, eu queria escrever,
pois estou vendo muitas pessoas que amo inquietas e tristes pois estão sendo
obrigadas a não ficarem no “grupo de contexto ao cuidado” e isso está
violentando elas, por não serem o grupo de “risco” que a OMS colocou, e assim,
não terem a “desculpa” perfeita para permanecer no isolamento e ainda por cima
estarem sendo motivo de chacota, ou de
desdém por compreenderem que somente o isolamento modifica números como os de
hoje: oito dias, um milhão de novos casos em TODO mundo.
Por definição declaro grupo de risco para o Brasil: você que
reclama toda hora da máscara e não conseguiu se entender com ela ou
simplesmente desistiu. Você leu? Você que não usa a máscara é risco para as
pessoas a sua volta. Você que precisa mudar de “ares” e quer estar na praia,
malhar nos parques, praticar qualquer atividade em grupo (ou pior, em grupo e
SEM MÁSCARA!!!), você é risco para o Brasil. Você que acha que não precisa
passar álcool gel, que não quer manter distancia mínima de segurança, que não
troca a roupa quando chega em casa, que não toma banho e lava os cabelos por
preguiça, você é risco para o meu país. Você que é chefe e insiste em ter todos
os seus funcionários no mesmo espaço sem ao menos tentar efetivamente
implementar trabalho remoto, você é o risco para o Brasil. Você que solta seu
cachorro no gramado, vendo que ele está curioso para cheirar outras pessoas e
sabe que elas terão compaixão e irão fazer carinho nele, você é o risco para o
Brasil. Você que quer manter seu estabelecimento aberto descumprindo as medidas
das autoridades responsáveis, você é o risco maior do meu país.
Ainda falando com você, que nos coloca a todos em risco,
saber que pode carregar esse vírus que vai infectar uma pessoa e que esta, por
consequência, pode infectar outras - e em algum ponto dessa transmissão alguém
poder morrer - não é suficiente para ficar isolado? Não é suficiente para você,
grupo de risco?
Você, que acredita que o vírus não vai pegar você, porque
tens a vida perfeita, plena e consciente, você é o grupo de risco para o
Brasil. Você, você e você, entendeu?
São 100 (cem) dias, não é uma crença, não é um excesso de
cuidado, é uma situação extrema, são milhões de mortes sem apoio do governo e
você, grupo de risco para o Brasil, é conivente com isso tudo.
Vivo a pandemia do COVID-19 e estou compreendendo muito
sobre mim e sobre você!
C´est l avie!
Carolina Cangemi Gregorutti